Sinfonia dos Ventos - O Recuerdo - Capítulo I

24/11/2013 10:52

CAPÍTULO I

RECUERDOS DE UM AMOR

              Numa manhã, por meados de março de 1913, estava Inácio mateando solito, olhando para estrada, uma estrada velha onde há tempos não passava nada, além de carreteiros pedindo pouso em seu rancho, para se abrigarem das chuvas súbitas de outono.

                Cada vez que Inácio mateava por mais lavada que estivesse sua erva, no final sempre sentia um gosto amargo; já havia andado pelos armazéns da região, destratando Chico Anel, Tia Zilda e sem deixar por delongas até seu companheiro bolicheiro Anélzio, amigo de infância que aprenderam a ler e rabiscar algumas palavras juntos. Dizia Inácio para essa gente de negócio:

-Tá na hora de criarem vergonha! Saber classificar, comprar e guardar a erva mate de um jeito que não azede e crie mofo! Pobre Inácio, não sabia que esta última extração de erva mate vinda das bandas do Contestado, teve a melhor das melhores folhas verdes como pasto nascido depois de uma queimada de campo. Tanto que diziam pelas bocas do povoado, que nas caldeiras de secagem queimavam folhas que não estavam tão verdes, junto com lenha de canela e casca de pinheiro araucária. Inácio não percebera, mas o que realmente estava amarga era sua “alma”.

Inácio perdera sua noiva por uma doença, não houve curador e médico da redondeza que a salvasse, no verão passado. Ficou tempo sem dormir e comer bem. Muitos de seus dias nem se animava em pegar sua guitarra com intento de prender versos e cantigas alegres como fazia outrora; por volta e meia, comia um carreteiro feito de charque fresco comprado no armazém da Tia Zilda, que dava uns nacos de marmelada e queijo, pelo simples fato de ficar contando de suas proezas que fez no passado, quando viajou por terras distantes, onde a língua e a cultura eram tão diferentes da sua, como sal e açúcar mascavo, vindo de serra abaixo trazida pelos tropeiros.

Lembrava com veemência dos dias que passara com sua morena nas tardes de domingos, na qual eles fugiam para um capão de mato perto da cachoeira, donde lascavam beijos, suspiros e abraços intensos, porém faziam às pressas antes que seu prometido sogro desconfiasse. Por instantes sentia alegria, mas como se um trovão atravessasse campo a fora, causando um alarde deixando seu coração saltar pela boca; Inácio caía em si que, momentos antes da morte de sua percanta, ele percebera que ela sentia-se cansada, amarela e pálida como flor de macela colhida no período de quaresma, e não acreditara que estes sintomas tirariam para sempre, ela de seus braços.

Certo dia, Inácio recordou de relancina, que esteve receoso assim como um cusco farejando uma presa, quando ele foi falar a sós com o senhor Nereu, pai de sua noiva; homem de mão cheia, que fazia botas torneadas com couro de pelica de boa qualidade, vinda dos curtumes renomeados, das bandas do Rio Grande do Sul.

- Buenas, Senhor Nereu! Como tens passado?

- Sabe! - continuou Inácio sem nem mesmo esperar a resposta de praxe do velho.

- Tenho notado que Cassilda tem andado desanimada, como nos demais encontros domingueiros que tivemos, será que ela está atacada do “figo”? Ela está sem cor vitalícia em seu rosto - afirmou Inácio, colocando a mão no seu queixo de barba castanha, misturada com ruiva, de acordo como a luz do sol batia na sua face.

- Verdade! - respondeu Nereu olhando no fundo dos olhos de Inácio.

- Já andei vendo com D. Maruca, curandeira de respeito, que tratou do meu avô quando levou uma flechada nas paletas, de um bugre, a velha me disse que, Cassilda precisa tomar chá de macela com gemada todas as manhãs para melhorar o sangue e tirar a tosse seca que vinha atazanando-a há dias.

                Em certa madrugada após tentar várias e várias vezes dormir, a única companhia naquela noite melancólica era o incansável coaxar dos sapos no banhado. Inácio com seus olhos abertos como lambari de sanga, tristemente se lembrou no dia de céu azul em que foi visitar sua noiva; ao chegar, atou seu Pingo em um galho de aroeira, que tinha boa sombra, na frente da casa de Nereu. Ao caminhar pelo carreiro feito de pedra-sabão, passou sua mão direita por entre rosas vermelhas que havia no jardim, olhando de soslaio para a esquerda, contemplando margaridas com seu deslumbre de branco e amarelo forte, como gema de ovo naquela tarde quente de novembro.

Inácio se virou na cama de um lado para outro parando após dar um longo suspiro e voltou a recordar na cena onde pediu licença, abriu a porta da sala e viu Cassilda sentada no meio de um sofá de três lugares, rosto amarelado, respiração ofegante e um olhar cansado. Cassilda nem se levantou para cumprimentar  e disse:

        - Oi, meu amor! Desculpe-me, estou cansada e fraca, se eu levantar deste sofá eu creio que desmaio.

- Nossa, meu amor! Como assim? O que aconteceu? - perguntou Inácio, sentando ao lado direito e segurando a mão gelada e suada de Cassilda.

- Onde estão seus pais? - perguntou ele.

- Papai está na sapataria, pois tem uma encomenda grande de botas para os funcionários da serraria do seu Eleonor.

- E sua mãe? - indagou Inácio, passando o lenço no rosto de sua noiva para secar o suor frio.

- Mamãe está na casa de Cassiane, minha irmã mais nova, foi levar doce de figo e matar a saudade de seu neto.

- Vamos, meu amor! Deixe eu te ajudar, iremos agora à casa do doutor Sebastião.

- Não precisa, meu amor - falou carinhosamente Cassilda olhando em seus olhos e beijando-o em seguida.

- Não Cassilda, você virá comigo na garupa custe o que custar.

Inácio pegou o pala de seu Nereu, que estava pendurado em um prego ao lado da porta da cozinha de chão, colocou nos ombros de sua amada e se foram campo a fora. Inácio foi com uma mão na rédea e outra segurando o braço de Cassilda colado ao seu peito, dando equilíbrio e segurança para ela não cair.

Ao chegar à casa do doutor Sebastião, apeou e levou no colo sua morena que já estava sonolenta. Gritou:

- Doutor Sebastião! Nem foi preciso gritar duas vezes para o doutor sair da sua casa em passos rápidos, ajudando a colocar Cassilda na cadeira de balanço que tinha em sua varanda, donde ficava todo fim de tarde lendo seus livros didáticos e diagnósticos.

- Vamos Inácio! Ajude-me a levá-la para o quarto de hóspedes! - afirmou Sebastião, verificando a pulsação de Cassilda manualmente.

- Jandira! Consiga-me água quente, uma bacia, panos limpos e secos, depressa, ordenou o doutor para sua empregada, cabocla de estatura baixa, cabelos longos e ensebados; era uma senhora na casa dos seus quarenta anos, vinda da região do rio Lava Tudo.

Quando colocaram Cassilda na cama, Inácio e Sebastião viram que seus olhos voltaram para cima, ficando somente os globos oculares branco em seu rosto pálido. Gemidos de dor e ânsia de vômito começaram a fazer Cassilda se agitar enrolando-se nos lençóis brancos.

- Depressa, Inácio me ajude! - disse o doutor segurando a cabeça dela para que não se debatesse na cabeceira da cama. Inácio sem acreditar no que estava acontecendo assumiu o comando segurando com força e carinho, enquanto Sebastião foi preparar uma dose de remédio para injetar na veia de Cassilda. No meio desta aflição, Jandira apareceu com uma bacia esmaltada branca, com a borda preta e toalhas brancas apoiadas em seu braço direito.

Após alguns minutos aplicado o medicamento, Cassilda parou de se agitar, descansando em um sono profundo.

- Vamos, Inácio!- Vamos! Ela tem que descansar e nós devemos nos alimentar; pelo que vejo teremos uma noite de muito trabalho. - Sussurrou Sebastião em seu ouvido, colocando sua mão macia e branca de pessoa que nunca trabalhou no pesado, no ombro dele, tirando-o do quarto educadamente.

No fim daquela tarde, Inácio sentou em uns dos degraus da escada que servia de acesso ao pátio para a varanda frontal da casa do doutor Sebastião, e viu o sol se escondendo entre os pinheirais onde as tirivas que passavam em bando, gritavam e pousavam nos galhos das araucárias. De longe da estrada percebeu que uma carroça chegava, ao se aproximar o veículo, pôde notar que se tratava de seu sogro e sua sogra. A carroça com sua roda de madeira envolvida por um aro de ferro; ao passar pelo cascalho emitia um som de pedras se quebrando junto com o barulho dos cascos dos cavalos que puxavam, formando uma poeira que o vento se encarregava em levar para longe, acompanhado com sua sinfonia triste que arranhava o coração de Inácio na esperança de ver sua amada curada.

Dois dias se passaram de espera e angústia, Inácio junto com os pais de Cassilda, estavam sem saber o que havia de errado; eles dobraram os joelhos e juntos com murmúrios de choro pediram a Deus que ela ficasse melhor. Fazia aproximadamente quinze dias que, num churrasco acompanhado de carreteiro, repolho e tomates frescos, Inácio havia feito para pais, parentes e amigos seus e de Cassilda, declarando-se abertamente momentos antes de servirem a boia, que seu sonho era formar uma família com ela, retirando do bolso de sua bombacha um par de alianças de ouro legítimo, vindo da capital feita por ourives açorianos. Todos ficaram surpresos com sua declaração, gritos de sapucai entre desejos de felicidades foram os acordes alegres, que a vida preparou para o casal naquele dia.

Por instantes, um ardume em seus olhos sentira; parecia que não havia mais lágrimas para rolar em seu rosto, como se a fonte de onde se gera esta água salgada que fluía em seus olhos em momentos de muita tristeza, houvesse acabado. Ao se levantar sentiu um formigamento nas pernas por ter ficado muito tempo de joelhos, olhou para trás e viu que o doutor Sebastião vinha caminhando em sua direção com um sorriso de boas novas.

- Senhoras e senhores! Cassilda acabou de acordar ela está fraca, mas sua pressão arterial está controlada - disse Sebastião pegando um lenço de seu casaco branco enxugando em seguida sua testa e pescoço. Sorrisos se despontaram entre eles.

- Podemos vê-la?- perguntou Nereu abraçando e olhando rapidamente para sua esposa.

- Sim, vocês podem, mas antes necessito dizer que temos que levá-la para a capital o quanto antes; eu não tenho recurso para mantê-la aqui, com vida, por muito tempo! Jandira, avise os peões que estão no galpão! Eles devem preparar a minha charrete e a levaremos imediatamente, suspirou o doutor, olhando para o chão.

Depois de recordar destes detalhes, Inácio notou que estava em seu leito suado, com os lençóis e cobertas aos pés da cama por ter se debatido tanto, sentiu que o sono estava se aprontando e seus olhos vagamente foram se fechando e o som dos sapos no banhado foram ficando cada vez mais fraco e distante até o momento que dormiu.

Ao acordar, com o canto de um galo e ao grito das galinhas angolistas, sentiu que seu corpo estava todo dolorido, como se tivesse puxado arado o dia inteiro sem cessar. Um gosto amargo na boca e um cheiro forte provindo de seu suor que secou na madrugada de outono, devido aos recuerdos de Cassilda, fez Inácio se levantar e tomar um copo de água na cozinha. Olhando para a janela que avistava um terneiro dando cabeçadas no ubre da vaca para mamar, Inácio não conseguia tirar do pensamento que depois de alguns dias após ter falado sobre a saúde de Cassilda ao seu sogro Nereu, arrepiou-se em lembrar-se do dia que estava lavrando a terra com tanta galhardia para plantar morangas, com intento de conseguir uns cobres para comprar peças boas de carne de gado e ovelha, além de contratar um gaiteiro acompanhado com um guitarreiro para varar a noite, tocando na festa de seu casório. Afinal doutor Sebastião havia levado Cassilda para capital, com intuito de conseguir melhores recursos clínicos no tratamento da doença, estava tudo certo, agora tudo, “tudo” iria melhorar. Cassilda curada poderia se casar com ele formando uma família, onde Inácio almejava ter vários filhos para ajudar na lida do dia-a-dia, ensinar a tocar violão, recitar poesias e falar de suas aventuras onde desbravou com a cultura de outros povos junto ao fogo de chão. Mas, numa madrugada, após Cassilda junto com doutor terem partido para capital do Estado, Inácio acordou com os quero-queros fazendo alarde na frente do rancho; percebeu que seu sogro chegava a galope,  gritando com uma voz tremida:

-Inácio! Inácio! Inácio “se alevante, filho de Deus!”

Sem pestanejar Inácio já estava em pé na porta do rancho, segurando um candeeiro fumacento de óleo de baleia que um tropeiro lhe dera de baciada quando vinha do litoral. No meio da fumaça pôde notar que nos olhos do Senhor Nereu havia um vermelhão, como se tivesse há tempo, no meio de uma fumaça de lenha verde.

- Inácio! - disse Nereu, Cassilda, minha filha... Deus do céu! Sua noiva faleceu.

Na hora, uma mistura de revolta, tristeza e angústia ocasionaram náuseas, como se uma geada estivesse se formando em seu estômago, junto com uma punhalada no coração cravado de um punhal mal afiado e gelado, fez Inácio se arcar lentamente como uma velha reumática e suas pernas já não sentira mais. Um gosto salgado na sua boca aparecera acompanhado de suas lágrimas que escorriam de seus olhos e bochechas entrando em sua boca entreaberta parando em sua barba. De joelhos, no chão chorando com gritos e clamor de tanta melancolia, Inácio fez o vento parar com sua sinfonia que fazia por entre as frestas das paredes do rancho.

 


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